Venho
reclamando, há tempos já, por meio de artigos, de entrevistas e de livros
publicados, a falta de preocupação com os fundamentos hidrológicos aplicados a
pequenas bacias hidrográficas, formadoras e mantenedoras de nascentes e
córregos. É a hidrologia de pequenas bacias, que precisa ser
incentivada no país. Com o anúncio do programa Novo Chico, visando revitalizar
o rio, retornam os conceitos gerais de conservação de nascentes, muito
centrados nos reflorestamentos ciliares. As preocupações (ou reflexões) que
passarei a fazer decorrem da percepção de que as tecnologias disponíveis no
País para revitalização da capacidade de produção de água são geralmente
adotadas sem levar em conta as especificidades dos ecossistemas hidrológicos
das bacias a serem trabalhadas.
1) Em razão
da obrigatoriedade de fazer licitações para execução de quaisquer atividades de
conservação no âmbito dos Comitês e das Agências de Bacias, os termos de
referências das chamadas ficam concentrados nas especificações de números de
barraginhas, de terraços, de áreas a serem reflorestadas etc. Exigem
espaçamentos, diâmetros, georreferenciamentos e chegam, até mesmo, a pedir
explicações sobre a maneira com que os moirões vão ser fixados no solo. Mas
quando vamos ver os fundamentos, a descrição de solos é muito genérica e não há
referências a velocidades de infiltração ou a ocorrências de camadas adensadas
próximas das superfícies. Sequer são mencionadas, explicitamente, as
possibilidades de infiltração para recarga de aquíferos. Julga-se, como
suficiente, a diminuição da erosão do solo, o que é um erro, pois as enxurradas
poderão estar sendo simplesmente substituídas por escoamentos subsuperficiais e
os aquíferos não serão abastecidos. Sem conhecimento da hidrologia da pequena
bacia, as estruturas de conservação poderão ser mal dimensionadas, ou locadas
erradamente. Por exemplo, barraginhas e caixas de captação de enxurradas não
podem ser locadas erraticamente, pois se colocadas próximas de nascentes e
córregos terão seus armazenamentos drenados rapidamente ( ver artigo “Sobre
barraginhas, terraços e caixas de captação de enxurradas”, com referência no
final deste artigo). Cuidado, também, com fórmulas que usam coeficientes de
correção não compatíveis com os comportamentos hidrológicos da pequena área. Os
modelos matemáticos podem ser belíssimos, mas acabarem produzindo péssimos
resultados pelo uso de coeficientes inadequados. Pequenas bacias hidrográficas
são mais bem entendidas com o uso de modelos físicos, facilitando o trabalho de
quem milita no campo e precisa entender o que está acontecendo ao seu redor. Qualidade
de observação e acúmulo de prática são características fundamentais para quem
se dispõe a trabalhar na produção de água;
2) Nas propostas de reflorestamentos, não há nenhuma
referência à eficiência de sistemas radiculares na exploração do perfil do
solo. Se a capacidade de armazenamento de água no perfil do solo for, por
exemplo, de 1mm/cm, as raízes explorarem até 100cm de profundidade e ele estiver
com 50% de deficiência de umidade, as chuvas precisarão repor os 50mm de
deficiência antes de começarem a abastecer o aquífero subjacente. Melhor,
então, que as raízes explorassem apenas 50cm. Quanto aos reflorestamentos
ciliares, há um erro em superestimar suas ações em prol da quantidade de água.
Reconheço, é claro, os benefícios ambientais das matas ciliares, o que
justifica a sua existência, mas eles não contemplam aumentos de vazões de
nascentes e córregos, em quaisquer situações Pelas exigências do Código
Florestal, as áreas ciliares protegidas vão ficar em torno de 10% das
superfícies das pequenas bacias, o que é muito pouco para garantirem suprimento
de aquíferos. Além do mais, como estão muito próximas de nascentes e córregos,
os volumes nelas infiltrados serão drenados rapidamente, não ficando
armazenados para garantirem vazões de estiagens. Mas o encantamento com as
matas ciliares é tão grande e arraigado que já virou dogma ambientalista.
Aumentos de vazão de córregos debitados a reflorestamentos ciliares recentes,
são, na maioria dos casos, provenientes de práticas mecânicas também
implantadas; estas, sim, capazes de responder rapidamente. Parece haver,
portanto, uma exagerada preocupação em prestigiar as matas ciliares, mesmo que,
no caso de quantidade de água, elas estejam agindo ao contrário, pelo efeito
oásis, por exemplo. Efeitos positivos na produção de quantidade de
água só virão em longo prazo e sempre na dependência das condições
regionais em que se encontram as pequenas bacias; dos entornos, portanto. Para
entender melhor isso, será bom que o leitor se disponha a ler os artigos “Mata
Ciliar – parte I: da metragem ao sonho”, “Mata Ciliar – parte II: efeito oásis
e consumo de água”, “A vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas”
e “Floresta e produção de água”, com referências no final deste artigo;
3) Não é
suficiente a informação apenas dos totais anuais de precipitação, pois como as
chuvas precisam ser confrontadas com as velocidades de infiltração de água no
solo, há necessidade de se conhecer as intensidades mais comuns. As tecnologias
precisam ser planejadas para, se possível, reter e infiltrar os volumes
recebidos em tais intensidades. Ou, pelo menos, estabelecer as proporções que
poderão ser retidas. Em regiões onde as chuvas são concentradas em pequenos
períodos ao longo do ano, deve ser redobrada a preocupação em reter o máximo
possível dos volumes precipitados;
3) As ações
de conservação, mesmo quando fazem referências a princípios hidrológicos, usam
os aplicáveis a grandes bacias e que não são suficientes para explicar os
comportamentos de pequenas (aquelas de ordem 1, 2, preferencialmente, ou no
máximo 3, em áreas muito drenadas). Nestas há uma prevalência de tempo de
escoamento sobre a superfície em relação ao escoamento nos leitos dos córregos,
possibilitando entender as relações solo/água/planta e agir para que elas
favoreçam os aquíferos subterrâneos. Esses aquíferos são as caixas d’água que
garantem os fluxos das torneiras (nascentes) e das tubulações (córregos).
Aproveito para chamar a atenção para um movimento que anda se espalhando pelo
país e que propõe tecnologia para conservar nascentes (há muitos vídeos no
YouTube). Trata-se, na verdade, de simples conserto da torneira, com sua
limpeza e proteção. Nada com relação à garantia de abastecimento de água na
caixa (aquífero). E o pior é que há muitas organizações e entidades embarcando
nessa canoa furada, demonstrando desconhecimento do processo de produção de
água das bacias hidrográficas. Não custa insistir que nascentes e córregos
são produtos das interações entre as chuvas e os componentes físicos e bióticos
distribuídos por toda a superfície das pequenas bacias hidrográficas;
4) A grande
concentração de nascentes e córregos está em propriedades rurais, maioria
pequenas, indicando que as tecnologias devem chegar a elas pela metodologia de
extensão rural. Não funciona a ideia de contratar uma empresa para executar as
tarefas e outra para fiscalizar. Quando o canteiro de obras é desmanchado,
começa o desmanche, também, dos equipamentos implantados, pois as Agências e os
Comitês não estão aparelhados para dar assistência pós-execução.. Os
procedimentos de educação ambiental exigidos nos termos de referências são
meros paliativos, pois não estão apropriados às culturas das comunidades. Além
disso, não são palestras e poucos encontros que vão mudar comportamentos. O
trabalho precisa de consolidação ao longo do tempo, o que só pode ser feito por
quem tem o campo como trabalho contínuo e permanente. As preocupações expostas
ficam mais acentuadas quando se pensa em estabelecer o “Pagamento por Serviços
Ambientais”;
5) Todos os
estados, e muitos municípios, possuem uma ou mais instituições ligadas ao campo
e que poderiam ser envolvidas nos trabalhos de conservação. Em Minas Gerais,
por exemplo, que conheço melhor, há a Emater (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural) , a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) e
o IEF (Instituto Estadual de Florestas), que já atuam em todo o estado e que poderiam
formar uma força-tarefa para trabalhar com os Comitês e Agências ( por meio de
convênios e contratos dentro do programa Novo Chico, por exemplo). Esta
força-tarefa voltaria para a sala de aula para discutir hidrologia e manejo
de pequenas bacias e sistematizar procedimentos de atuação, evitando
que divergências e vaidades corporativas possam vir a prejudicar as atuações no
campo. A força-tarefa passaria a ser responsável pelo planejamento, pelo
acompanhamento da execução e pela consolidação das práticas de conservação.
Assim, quando o executor de uma atividade específica (licitada) desmontar o
canteiro de obras, a força-tarefa estará presente para garantir o funcionamento
das estruturas implantadas. Acho isso tão óbvio que há momentos em que penso
fazer papel ridículo em levantar o assunto. Também acho óbvia a perda de tempo
com a criação de comissões formadas com ajuntamento de muitas instituições, um
representante daqui, outro dali, mais um de acolá, etc., etc. O resultado são
reuniões e mais reuniões, desfiles de vaidades e pronto. Como colegiados,
bastam os Comitês de Bacias e os Conselhos de Recursos Hídricos. Ainda tenho
ojeriza com a criação de programas e mais programas, pois no País temos a mania
de criar um novo programa para encobrir o fracasso de outro, ou dar uma nova
denominação para velhas demandas;
6) É
importante que a contabilidade de água da bacia seja feita, confrontando
valores de precipitações com os das vazões dos córregos drenantes ( ver artigo
“UTI ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas”, com
referência no final deste artigo). Também, sempre que possível, pesquisar um
pouco da história do comportamento do córrego ao longo dos últimos anos.
Moradores antigos do lugar sempre terão alguma coisa interessante para contar.
Com tais análises, é possível estabelecer metas para a vazão desejada nos anos
futuros e planejar as atividades com esses objetivos. Daí a importância de
medições contínuas dos parâmetros meteorológicos e hidrológicos para o
acompanhamento das reações. Fico incomodado com avaliações de resultados onde
predominam qualificativos como: melhorou, aumentou, os resultados são
excelentes, etc. Quero sempre saber de quanto foi a melhora, o aumento ou o
resultado considerado excelente. Por exemplo, a vazão do córrego era de 80
L/min e passou, depois de dois anos, para 104 L/min, com aumento de 30%. Quem
vai fazer esse acompanhamento? Alguma instituição da força-tarefa.
Publicações
do Autor (relacionadas com o tema)
1) Artigos
no Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br); podem ser encontrados também no
Google:
– UTI para
nossas águas
– UTI
ambiental: diagnóstico da água I
– UTI
ambiental: diagnóstico da água II
– UTI
ambiental: diagnóstico da água III
– UTI
ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas
– UTI
ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas I
– UTI
ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas II
– UTI
ambiental: revitalização de bacias hidrográficas I
– UTI
ambiental: revitalização de bacias hidrográficas II
– Mata
Ciliar – parte I: da metragem ao sonho
– Mata
Ciliar – parte II: efeito oásis e consumo de água
– A
vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas
– Floresta
e produção de água
– Sobre
barraginhas, terrações e caixas de captação de enxurradas
2) Livros
(Editora Aprenda Fácil; www.afe.com.br)
–
Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas
– Das
chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia
3)
Monografia (disponível por e-mail)
–
Fundamentos hidrológicos da recarga artificial de aquíferos de pequenas bacias
hidrográficas
*Osvaldo
Ferreira Valente , Articulista do Portal EcoDebate, é engenheiro
florestal, professor titular aposentado da Universidade Federal de Viçosa e
especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas
(valente.osvaldo@gmail.com)
Extraído de
Portal Eco Debate